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quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

O Banho


Nunca entendeu verdadeiramente, a razão porque os vivos lavam os mortos e os vestem com os melhores arreios, quando afinal aquilo tudo, principalmente a matéria de que somos feitos (carne, músculos, ossos, sangue, vísceras, etc.) vai ser comido, senão devorado avidamente em perfeito deleite, por larvas e outros vermes do género.

Talvez uma preparação para o desconhecido, para onde o morto, outrora vivo, agora parte. Visão romântica e doce da morte propositadamente induzida para se a conseguir suportar. Ou talvez apenas para o odor da carne a apodrecer em rápida decomposição não sufoque as narinas e os pulmões dos ainda vivos enquanto dolorosamente se despedem do corpo.

Seja lá porque razão for, se a pensar nisso e a poupar trabalho a terceiros, ou se noutra coisa qualquer, ela hoje acordou cedo e em vez de ir correr como planeia quase todas as noites quando se deita, depois de passar longos minutos imersa num torpor inexplicável, envolta em pensamentos macabros, levantou-se e tomou banho. Banho. Um banho grande. Primeiro molhou-se e ensaboou-se com sabão azul e branco, substância elegida pelas suas propriedades anti-bacterianas, depois uma segunda passagem com sabonete de alfazema, que sempre cheira melhor, sabonete para a higiene íntima, com o qual lavou as partes mais íntimas do seu corpo de mulher, com uma espuma abundante, e por fim ainda embebeu uma esponja em gel de banho, delicamente perfumado, e esfregou cada milímetro do seu corpo como se lavasse o chão. Com vigor exageramente enérgico para a situação, esfregou o pescoço, a barriga e os seios, os ombros, as costas, os braços, as nádegas, as coxas, os joelhos, os pés, não necessariamente por esta ordem e repetindo várias vezes as mesmas áreas. Tudo isto já depois de ter esfregado o cabelo com idêntico vigor, com várias passagens de champô, e agora, que este absorvia o amaciador num emaranhado de cabelo espetado.

Tomou banho como quem toma outra coisa qualquer. Uma bebida. Um medicamento. Que limpe, remedei estragos, alivie sintomas e feche chagas, provoque sensações de uma melhoria qualquer. Mesmo que sejam apenas sensações. Efémeras como efémera é a própria vida.

“É uma estupidez isso que dizes!”

Calou-se, resignada à sua “estupidez”.

A voz ecoava-lhe na cabeça uma e outra vez enquanto tomava banho e esfregava a pele. Uma estupidez.

E estupidamente, sem treinar a ponta de um corno há semanas, está a pensar alinhar na partida do Grande Prémio Fim da Europa já no próximo domingo dia 24 de Janeiro de 2010, dia em que completará 41 anos de vida, e mais estupidamente ainda, pensa que vai chegar à meta. A correr. Estupidamente… a correr.

3 comentários:

Mité disse...

Nuskita
É sempre bom ler-te!!! Mas….

A morte existe é um facto não podemos fugir dela, podemos é suavizar a vida vivendo-a, e não pensar doentiamente no que não interessa.

Vestir e lavar os mortos são rituais que os vivos criaram por diversos motivos e rituais existem em todas as civilizações.

Nada suaviza a dor da perda, mas cada um vive-a da sua forma seguindo os rituais pré-estabelecidos, é assim a vida em Sociedade.

Existem coisas que não podemos mudar.
Podemos procurar é uma forma mais positiva de ver a vida...

Tomar banho é bom, o sabão, o cheiro, a alfazema, o gel... quase gostei!! mas, o mau é aquilo que não se pode lavar e que TEM de ser "lavado" que é : o que vai dentro de cada um de nós, na nossa cabeça !!

Eu sei que um dia ela vai poder dizer,"- que bom tomar um Banho"
sem pensamentos tortuosos, vai dar à vida e à morte um outro sentido.

Um dia ela vai ser feliz!!!
Tenho a certeza !!

Beijocas boas

José Garrido disse...

Ana, que a Serra e a estrada de Sintra ( mesmo misteriosa) seja o seu designio no domingo...lá estarei para a receber e cumprimentar nem que seja no fim da Europa.
Mais um post que é um pronúncio de vida, pois o ritual do banho não se aplica á morte..embora se lavem os cadavéres!
Beijos Ana

JGarrido

Isilda disse...

Lavar os mortos é sinal de respeito e AMOR que se tem à pessoa a quem se dá o banho. Uma última homenagem que se presta aquele Ser que em tempos respirou, cantou, chorou, riu, amou, enfim VIVEU. Ritual ou não, não tem a ver com minhocas e vermes que o vão corromper. Para mim é respeito e muito amor. Tomar banhu«inho é tão bom. Ficamos com a alma lavada (além de outras coisas, claro está - eheheheh) e faz-me cantar muito. E quem canta seus males espanta. Encara o banho como uma limpeza geral. Como purificação, nem que seja só o tempo que o banho dura. Jokas boas da IP