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quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Faço anos

24 de Janeiro de 1977

A menina sente uma alegria gigante dentro dela. Crescente. Quase euforia. Afinal ela hoje faz anos. Oito. Foi à escola como todos os dias, enfrentando medos e desafios, e como todos os dias passou despercebida, o que se lhe tornara não só suportável, mas até agradável e muito confortável. E hoje, aquele sentimento de alegria era um segredo só dela. Uma raridadade, uma preciosidade, um segredo que a tornava verdadeiramente especial. Ela hoje fazia anos e mais ninguém sabia e apesar da alegria que sentia, a timidez não deixava que nada nela transparecesse, o que mais valorizava o "segredo".

Chegou da escola e largou a pasta vermelho escuro, já gasta e herdada do irmão. Agora com uma nova pega de couro, cozida à mão pelo avó Quico, sapateiro de profissão, o que muito a embaraçava junto dos colegas de escola, com pastas novas, brilhantes e com o inconfundível cheiro a novo a inebriar-lhe os sentidos. Ainda hoje o sente e ouve com nitidez o baralho do fecho metálico das malas deles, novinhos em folha. A dela, de fechos gastos, já não fazia aquele som e na verdade só um deles funcionava.

Mas nada disso interessava hoje. Hoje ela fazia anos. Pensou que poderia ter um prenda em casa a aguardar por ela. Como no ano passado, aquele livro de colorir, gigante, com tantas páginas e tantos desenhos bonitos. Durava até hoje, ainda com algumas figuras por colorir.

A excitação crescente cessou bruscamente, quando a mãe, cansada e já feliz por a custo ter conseguido pôr comida na mesa para os filhos hoje também, que o mês já ia longo e até o pai, sempre ausente devido aos turnos na fábrica, receber de novo, ainda faltam muitas refeições para os quatro, lhe anuncia asperamente que este ano ela não tem prenda! 

Passado o choque inicial, a menina, magoada pelo tom agressivo, conforma-se e vai-se sentar à mesa para comer, em silêncio. Nem um soluço, nem uma palavra. Apenas reflecte. Sim, afinal até faz sentido. No ano anterior teve o livro para colorir, no ano anterior a esse, não teve nada, este ano, nada teve. Fazia sentido. O livro recebido no 7º aniversário, valia bem como prenda dos 6 e agora também dos 8. Sim, fazia todo o sentido. Agora, restava-lhe esperar pelo 9º aniversário e sonhar e acreditar que certamente aí, voltaria a receber uma prenda de anos.




 24 de Janeiro de 2018: 49 anos de Vida. Venham mais!





"Quantos anos eu tenho? Não preciso de números para marcar, pois meus anseios alcançados, as lágrimas que derramei pelo caminho, ao ver meus sonhos destruídos…
Valem muito mais que isso.
Não importa se faço vinte, quarenta ou sessenta!
O que importa é a idade que eu sinto.
Tenho os anos de que preciso para viver livre e sem medos.
Para seguir sem medo pelo caminho, pois levo comigo a experiência adquirida e a força de meus anseios.
Quantos anos tenho? Isso não importa a ninguém!
Tenho os anos necessários para perder o medo e fazer o que quero e sinto."


José Saramago

5 comentários:

PelaEstradaFora disse...

Muitos parabéns!
(Bonito texto também!)

Fernando Andrade. disse...

Um lindo texto, em que tanto me revejo nos aniversários da minha infância. Não voltei a criar expectativas nesses dias a partir das primeiras desilusões, fosse nos anos, fosse no Natal.Depois, habituei-me a ver esses dias coo se fossem iguais aos outros. É que o pratinho de comida na mesa, só era possível com sacrifício e tinha prioridade. A necessidade prevalece sobre o desejo e ter aquilo que era efectivamente preciso, ganhou. Por muito que custasse e que tivesse demorado alguns anos a perceber. Obrigado, Ana, pela lembrança de uma infância que parecia dura, mas que a esta distância, nos sentimos gratos por tê-la tido assim. Grande beijinho.
Ah... e gostei de ver as fotos em que o Pipas exibe um "caparro" de respeito, eheh.

Carlos Cardoso disse...

Muitos parabéns Ana e obrigado por um texto lindo que me deixou emocionado e a pensar na sorte que eu tive e continuo a ter. Que venham muitos e bons anos, com muita saúde e rodeada das pessoas (e animais :)) que te são mais queridas.
Beijinhos

S* disse...

Sempre sorridente... inspiradora! Parabéns atrasados. :)

Marta Moura disse...

E venham muitos mais.